quinta-feira, 22 de outubro de 2009

RELAÇÕES FAMILIARES NA LITERATURA

A Literatura contribui enormemente para a compreensão do homem e apresenta uma interface interessante com a psicologia.

Seguem alguns livros que abordam essa dimensão:

  • Laços de Família - Clarice Lispector
  • Os Irmãos Dagobé - João Guimarães Rosa
  • Os Irmãos Karamazov - Fiódor M. Dostoiéviski
  • Isaú e Jacó - Machado de Assis
  • Dois Irmãos - Milton Hatoun
  • O Vermelho e o Negro - Stendal
  • Crime e Castigo - Fiódor M. Dostoiévski
  • As mil e Uma Noites
  • Os Sertões - Euclides da Cunha

Em Laços de Família, publicado em 1960 - Clarice Lispector apresenta um conto intitulado AMOR, vou tecer alguns comentários à guisa de reflexões que fiz acerca desse "processo terapeutizante":

No primeiro parágrafo ela inicia... "Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação."

O feminino aqui está nomeado de ANA - que pode ser lido da esquerda para a direita e vice-versa, então acredita-se que "esse feminino", essa energia, transita, circula... e apresenta-se cansada portando "um novo saco de tricô" - é uma mulher que fia, tece a trama do tricô e da própria vida. Existe movimento interno e externo, externamente o bonde no qual "ela sobe" começa a andar... internamente suspira - expele o ar que a anima e revela sua desanimação ou como quer Clarice "meia satisfação"... ela não se encontra inteira... e afinal quem assim se acha?

No parágrafo seguinte: "Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos." (...)

Os filhos eram uma "coisa" objeto de apropriação "verdadeira", pois mulheres não têm filhos "de mentira", os filhos lhe são legítimos, brotam de seu ventre, saem-lhes das entranhas depois de um paciente gestar... e apresentam-se para Ana como "uma coisa verdadeira e sumarenta" - uma coisa que tem sumo ou muito sumo, sucoso, sumoso¹, têm conteúdo líquido, aquoso, da ordem do afeto, portadores de sentimentos. Cresciam , tomavam banho... seguiam a ordem natural do desenvolvimento humano e o banhar é "tirar a sujeira" apresentar-se limpo, asseado... mostrar-se para o social com "boa aparência". Exigiam para si... esse movimento egocêntrico é próprio do desenvolvimento nos primeiros anos de vida, mas podemos observar que filhos exigem sempre para si a vida inteira... principalmente da mãe, é dicífil partilhá-la, é difícil dividir a atenção dela, então exigem instantes cada vez mais completos, e aqui é preciso perguntar, quando estamos completos, nunca... vamos completando o incompletável, vamos costurando os retalhos e tecendo o tricô da existência a cada dia, mas aqui a possibilidade do exigir instantes cada vez mais completos pode dar-se pela tomada de consciência de que o outro não lhe pertence, não tem dono, Ana "está mãe deles", mas não é sua mãe, é um instrumento que viabilizou suas existências nesse plano, mas pertence ao insondável, ao mistério de onde provém todas as mães. Cresciam malcriados - quem "cria" é a mãe,´criar é tarefa feminina, da ordem do cuidar, proteger... o malcriado, às vezes se dá por não "corresponder às expectativas", apresentar-se de maneira indesejável, pois a mãe deseja, a mãe tem um perfil moldado internamente "sobre os filhos", mas eles são seres independentes e separados dela, possuem uma individualidade, uma singularidade que às vezes foge ao "modelo desejado".

¹ Conceito tirado do dicionário Aurélio - Ed. Nova Fronteira.

Por hoje é isso... como contadora de história peço que aguardem os próximos capítulos...

Abraços

Vania

Retomando o segundo parágrafo: (...) "A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantava as sementes que tinha na mão, não outras, mas estas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida." (...)

A cozinha é o lugar do fazer feminino, em 1960 uma família de classe média que adquiriu um apartamento a prestação, o marido provedor e a mulher dona de casa. Naquela época as plantas das casas e apartamentos destinavam às cozinhas um espaço maior, pois lá era o lugar do fazer a comida, prover o alimento, oferecer o sustento (preparado pela mãe, mulher, dona de casa) e onde a família se reunia em torno da comida e alimentando o diálogo, as últimas notícias de cada um.

O fogão enguiçado dava estouros... o portador do fogo, o instrumento manejado pela mulher para cozinhar o alimento... quem cozinha não cozinha só alimentos de natureza externa, cozinha sentimentos com seus mais variados matizes, aquece as emoções, tempera a provisão que dará sabor às vidas, às relações... também pode "levar em banho maria", pois o fogão enguiçado dava estouros... o fogo é o elemento do conhecimento, que dá a luz, que faz ver, simboliza na psicologia a intuição... e "ele" dava estouros, "sinais" do enguiçamento, indícios das relações "mornas", da vida "morna"... essa interpretação me faz lembrar uma passagem bíblica que diz "eu vomitarei o morno", ou seja, o morno não é comestível, "não desce" e se descer é digno de ser vomitado, pois não é possível fazer a "digestão", até engulo, mas o organismo se recusa a processar. O que será que dava "estouros" na existência de Ana simbolizado no fogão? O que nesta situação poderia enguiçar no humano, mais precisamente na mulher?

O calor também era forte no apartamento, a ordem do "quente" do "esquentar" estava presente ali, quando estou de "cabeça quente" mostro-me irritado, impaciente, sinalizando estouros de raiva, de descontentamento, de "meia insatisfação"...

Havia vento que poderia arrefecer o calor... o vento simboliza o pensamento... "lembrava-lhe" que se quisesse podia parar... então ela impõe-se um ritmo exaustivo, porque será que se ocupa tanto externamente (?), com o que não quer ocupar-se internamente? A ocupação externa rouba-nos de nós mesmos, sou ausente de mim quando me coloco a fazer para... mas se páro como um lavrador e contemplo o horizonte, tenho a possibilidade de dar trégua ao pensar que me rouba, tenho a possibilidade de sintonizar-me comigo, com as inúmeras estações internas que estão ruidosas... dando "estouros"... deixando entrever o caos, a desordem tão bem guardada.

Ela plantava as sementes que tinha na mão... procurava se ocupar do presente, esforçava-se para manter-se aqui agora, sem passado, sem futuro; ocupava-se do que tinha em mãos, o que era concreto, tangível... portanto não "sonhava" - o sonhar era para as sementes que desabrochavam e transformavam-se em árvores... amadureciam...

As sementes que se transformavam crescendo árvores, acompanhava o ritmo de crescimento de outra natureza: os escapes fugidios da conversa com o cobrador da luz (que acende, ilumina, clareia)... mas não se deve demorar, a conversa era rápida, pois o demorar é o risco para o envolvimento; crescia a água enchendo o tanque, como se ela estivesse distraída, "perdida em seus pensamentos, e novamente a água, o líquido (o sentimento) que pode transbordar; cresciam os filhos, o crescer aqui implica num afastamento natural da mãe, o distanciar da necessária autonomia, e a "solidão"... ou "ter" mais tempo para estar consigo... e o que fazer com isso? Crescia mesa com comidas, parecendo as matronas italianas que cozinham, cozinham... e cozinham, empanturram seus rebentos e maridos, deixando-os fartos, até enfastiados, novamente se ocupa em demasia com o que está fora, ou ao cozinhar externa o que está "entalado" internamente? Crescia também "o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome"... a rotina... o repetir-se... os hábitos escravizadores...e o natural afastamento de si e do que pulsa. Outra coisa a crescer e importunar era o canto das empregadas do edifício... "quem canta seus males espanta", quem não canta seus males encanta... e fica encantada, olhando a vida passar, irritando-se com a alegria alheia, pois essa acusa sua possível falta de alegria...

E por fim... "Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida"...dava tudo, estava tudo à mão, "a mão exprime as idéias de atividades, ao mesmo tempo que as de poder e de dominação (...) certos escritos taoístas (Tratado da Flor de Ouro) dão a elas o sentido do alquimista de coagulação e dissolução, correspondendo a primeira fase ao esforço da concentração espiritual, a segunda à não intervenção, ao livre desenvolvimento da experiência interior dentro de um microcosmo que escapa ao condicionamento espacial e temporal."²

Tudo que ela tocava era imbuído dela mesma, em tudo ia sua "marca", a tudo ela impregnava com sua digitais, sua identidade..."vai um pouco de mim em tudo que faço e toco, assim imortalizo-me, torno-me extensão nas coisas e nos outros.

² Dicionário dos Símbolos - Jean Chevalier e outro - Ed. José Olympio, 10ª ed., 1996.

Por hora paremos no segundo parágrafo.

Até mais...

Vania

Agora 22h58 do dia 23/10/09 continuemos...

Terceiro parágrafo: "Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem."

O que é uma hora perigosa, que riscos pode trazer para uma mulher como Ana? As Horas... um filme denso, angustioso, que retrata a vida de três mulheres influenciadas pela obra literária A Senhora Dallowey de Virgínia Woolf, escancara as lutas e conflitos internos destas mulheres e deixa entrever como "lidam" com este "tempo interno" que na angústia veste um capuz escuro e bolorento e purga a dor, trava o ar no peito, no ponto "angus" (centro do tórax) - por isso dizemos que sentimos um aperto no peito, é o sinal da angústia presentificando-se.

Essa hora perigosa para Ana "marcava um encontro" no decurso da tarde, pois a encontrava sem ocupação externa, então o encontro era consigo mesma... e nela toda a sorte de escárnios, pois até as árvores que plantara riam dela... o que nela era risível? Deixar-se esvair, esgotar-se em tarefas consumidoras de energia preciosa? Ocupar-se de tudo no entorno desocupando-se de si, negligenciando sua alma, sua essência?

Inquietava-se quando nada mais precisava de sua força... bendita inquietação... o acordador interno, que desvelava a força, revelava vida, desejo, criatividade... mantidos trancafiados em segurança, e como nada é totalmente seguro... escapavam... inquietando-a, desassossegando-a.

Sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco... emprestar sua força à família dava-lhe solidez, contornos de matrona, engrossando o tronco fortalecido pela raiz da família... executava tarefas da boa mãe prendada, sem demérito, pois fazer roupas, cuidar de proteger o corpo do outro das intempéries é tarefa feminina que remonta os tempos idos, que constitui nosso inconsciente coletivo. Usar a tesoura estalindo na fazenda devolvia-lhe a força do desejo, a arte soterrada em seu interior... despontava desafiando o cumprimento dos dias realizados... acabados... encerrados em si... mostrando-os belos... a beleza tange o divino, dialoga com a essência adormecida em leitos densos e profundos... que com o tempo (o purgar das horas) deixava entrever o gosto pelo decorativo que aplacava a desordem íntima... A tesoura cortava mais do que fazendas de tecidos, cortava dor, angústia, hábitos inúteis e como poda em roseira... é aguardar para ver o desabrochar da "flor de ouro", ou "carmim" da paixão, como queiram, cada um processa a própria alquimia a seu modo, tempo e espaço...

Com a desordem íntima suplantada, parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, tudo se processa, se encaminha, se transforma ao transformar... inclusive o si mesmo. Assim a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa, pois a alquimia resgatava a harmonia que podia ser emprestada às coisas; "a vida podia ser feita pela mão do homem". O dicionário dos símbolos apresenta no verbete "mão" que "a palavra manifestação tem a mesma raiz que mão; manifesta-se aquilo que pode ser seguro ou alcançado pela mão"; no conto de Clarice a vida podia ser feita pela mão do homem, o homem (homem e mulher) investia-se com a onipotência e onipresença do divino, podendo fazer vida, foi instrumentalizado para tal. Essa potência vêm aplacar a impotência que sentimos diante de tantas situações, e parece que arrefecia o encontro de Ana com a hora perigosa.

E então, caros leitores, o que me dizem?... estou divagando muito?... Manifestem-se...estou no aguardo do sopro "divino"...

Vania - 00h20

Ao 4º parágrafo... "No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha - com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera" . (...)

A raiz firme das coisas, que dá sustentação, alimenta a estrutura que cresce, raiz firme que embasa e dá segurança, uma das necessidades básicas para Abraham Maslow... e a raiz firme era o lar que perplexamente lhe dera, o lar remete ao porto seguro, tendo um lar sabemos sempre para onde voltar, não importa onde estejamos, a parábola bíblica do filho pródigo ilustra com requinte de detalhes esse simbolismo. Agora por que perplexamente - o que pode causar perplexidade, espanto, admiração ao ter o lar como raiz firme? Uma possibilidade de análise é que novamente o que assegura está fora de Ana, não está nela, pelo menos ela não reconhece em si.

"Por caminhos tortos, viera cair num destino de mulher"... suponho que a linha que traça a humanidade seja sinuosa, longe de ser previsível e retilínia, é de Dostoiévski a famosa frase "Bendigo as tortas linhas de minha existência que me trouxeram até você"... essa tortas linhas fizeram Ana "cair" num destino de mulher, o acaso! Segundo os Titãs - "o acaso vai nos proteger enquanto eu andar distraído"... se é o acaso quem determina o destino, parece que Ana "não teve escolha", mas ao nele cair teve "a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado"... fora feito para ela (?) ajustou, amoldou-se a ponto de surpreender... que grata surpresa! A surpresa de nele caber como se o tivesse inventado, supõe-se que isso, o destino, não inventamos, alguém inventa e nele encaixamos... e seguimos como se fosse nosso, nos apropriamos dando-lhe singularidade.

"O homem com quem casara era um homem verdadeiro"... no que consiste um homem verdadeiro (?), de que referencial vislumbra-se o ser verdadeiro neste homem (?), do referencial da narradora (?) ... este contexto me faz lembrar da música "Amélia não tinha a menor vaidade, Amélia sim, era mulher de verdade" de Ataulfo Alves letra de Mario Lago. Qual era o protótipo do homem "verdadeiro" em 1960(?) do ponto de vista da autora/narradora, me parece que o homem que chegava cansado do trabalho sorrindo de fome, pronto para ser alimentado e encontrava "aparentemente" este "alimento" no lar... e com ele, me parece, Ana tivera filhos verdadeiros... até onde o ter filhos verdadeiros deixa entrever, somente a mulher pode até certo ponto garantir a legitimidade dos filhos, mas legitimidade será o mesmo que "verdadeiro" (?). O dicionário Aurélio designa como verdadeiro: adjetivo 1. em que há verdade (...) 2. Que fala verdade: homem verdadeiro. 3. Real, exato (...) 4. Autêntico, genuíno, legítimo. É curioso que denomina como verdadeiro o homem... será que a mulher está subentendida?

"Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida" (...) juventude anterior ao que (?) estaria a autora referindo-se à fase que antecedeu o casamento(?) ou ao sentir-se jovem, com vitalidade (?) e se assim o for... a juventude havia de parecer estranha, impregnada de vida, padecendo de energia pulsante, lugar comum seria uma doença de morte. Como se apresenta Ana que não se enxerga "doente de vida", será que havia "sarado" e se tornado morta-viva (?), o que a fez chegar neste estado (?).

Da juventude doente de vida "havia aos poucos emergido para descobrir que também sem felicidade se vivia: abolindo-a encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha - com persistência, continuidade, alegria" ... ou seja abolindo a juventude doente de vida passou a fazer parte de uma legião para a qual antes não tenha olhos (eram invisíveis) e com isso descobre que se vive sem felicidade, a felicidade é um adereço, um adjetivo da juventude, a "vida com/na legião" era destituída da mesma, mas pincelava a tela da existência com outros adjetivos: persistência, continuidade, alegria - não menores, nem maiores,melhores ou piores que a felicidade, contudo diferentes, tingindo com outros matizes.

"O que sucedera com Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade de insuportável"... antes do lar havia uma exaltação perturbada, que confunde os sentidos, enibria a razão - nomeada de "felicidade insuportável", faz lembrar "A insustentável leveza do ser" um livro estupendo em profundidade na compreensão do humano, escrito por Milan Kundera, um marco em minha juventude, que fazia exaltar , perturbava de tanto que era intenso como tudo na juventude, porque isso se perde (?), é necessário perder (?), o que se ganha em troca: persistência, continuidade, mecanicidade, um "levar a vida", pois ela já não me leva mais(?); alguns cantores poetas retraram a felicidade assim: "o que foi felicidade me mata agora de saudade, velhos tempos, belos dias" (Roberto Carlos); "ser feliz é bem possível, a lua cheia me reduz a pedacinhos eu vira prata eu viro lobo, eu viro, viro vampiro, viro menino..." (Itamar Assunção), se eu puder escolher, eu eu posso, fico com Itamar... nada morno me apetece!

"Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela quisera e escolhera." (...) Como sujeito da ação, criadora do que move a própria vida, Ana optara por uma vida de adulto compreensível, reduzida a este adjetivo e suspirava revelando "meia satisfação". Atentem para as opções, o estar adulto implica em optar, e definir a própria vida, não atribuir a responsabilidade de bom ou mal aos outros, Ana era adulta e decidia viver de forma compreensível, e suspirar...

O quinto parágrafo: "Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada menbro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelo calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos , como se voltassem arrependedidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera." (...)

A hora perigosa da tarde exigia precauções - perigo é conceituado pelo dicionário Aurélio: 1. Circunstância que prenunica um mal para alguém ou para alguma coisa: evitar o perigo; temer o perigo (...) - novamente cabe aqui perguntar o que é tão perigoso, o que está em risco, o que Ana teme?

No livro Coração sem limites Ravi Ravindra (autor e buscador da verdade acerca de si), dedica um capítulo sobre O medo de "não ser capaz de" e relata o que segue: "(...) preciso de situações que não me deixem descansar e que não me permitam ignorar meu verdadeiro objetivo. Eu não sei quem sou. Mas necessito e desejo sabê-lo. O que é necessário de mim? Tanto me tem sido dado. Como posso esquecer a terrível lei expressa nos Evangelhos de que para aqueles a quem muito é dado muito será pedido? (...) diante de tantas questões e de algumas resistências, pergunta à Madame de Salzmann "como fazer esforços no Trabalho (nome dado aos ensinamentos de G. I. Gurdjieff) sem medo. Ela disse: 'O medo real é o medo de não ser capaz de'."

Partindo dessa premissa, Ana tinha medo de não ser capaz do que? De olhar para si mesma e se ver tal qual era? O que realmente era corresponderia às suas expectativas e busca? Será que ela buscava encontrar-se ou evitava, fugia da hora perigosa que poderia confrontá-la consigo mesma? Diante desse confronto ela seria capaz de sustentar o olhar para ver o que se revelaria? E eu, e você caro (a) leitor (a) seríamos capazes de sustentar o grande confronto com o espelho e perguntar-nos sem truques e responder a verdade acerca do que podemos perceber de nós mesmos?

Nessa linha de raciocínio Freud ao investigar as questões do feminino deixou em sua obra uma pergunta sem resposta: "O que quer uma mulher?" Ele enveredou por alguns caminhos, rastreou algumas respostas, mas sua honestidade científica o fez perguntar, pois sabia que não havia chegado à resposta mesmo sendo um investigador invejável que acautelava-se no exercício da neutralidade... então também arrisco a pergunta: o que queremos enquanto mulheres?

Retomando "a hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções" (...) - a casa é o simbolismo do si-mesmo e estava vazia, a casa externa não precisava dela nessa hora perigosa, mas a casa chamana Ana urgia no entardecer com o sol alto iluminando tudo o que poderia ser visto, escancarando os mistérios tão bem guardados, sem a proteção acalantadora da noite quando "tudo adormece".

"Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa haviam transmitido." (...) A função do espanto é pegar de surpresa, ultrapassar a barreira da razão e chegar ao coração... aquele que sente, mas as trincheiras estavam tão bem guardadas em Ana que "em sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto" - a ternura seria capaz de derreter, descongelar a fachada tão bem construída e lustrosa e aliar-se ao espanto, pois quem se espanta de verdade não tem coragem de continuar no estado em que se flagrou: ocupando-se das lides da casa de tijolos e negligenciando a casa de músculos, sangue e nervos sua verdadeira morada.

"Saia então para fazer compras ou levar objetos para consertar" (...), fugia desesperada da hora reveladora, ocupava-se de tudo que encontrasse no entorno, mesmo à revelia dos familiares, para voltar no fim da tarde sã e salva do temeroso encontro íntimo consigo e ocupar-se com tudo que a esperava, até dormir a noite de "tranquila vibração", à noite tudo aquieta-se, a pulsação frenética da vida, as vibrações das emoções intrusivas, dormir é entregar-se ao desconhecido intentando não estar presente, mas o Grande Outro (o insconsciente para Lacan) nunca dorme, é nossa salvação ou perdição... fazemos as escolhas sempre...

"De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres." (...) Acordaria sem despertar, envolta, com a aureola protetora dos "anjos dos deveres" - os salvadores de Ana que bravamente lutavam para impedir o encontro com as horas perigosas... até os móveis empoeirados vinham em seu socorro, como se ganhassem vida e clamassem por cuidados e ela como "boa mulher, mãe e dona-de-casa" cuidava deles e descuidava-se de si.

"Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera." (...) fazer parte obscuramente das raízes negras que vão fundo, penetrando suavemente mundos insondáveis, misteriosos, essenciais para a existência: obscuramente é à revelia dela mesma, de forma pouco consciente, como que guiada por forças que mesmo que queira não pode controlar... as forças que alimentam a vida... o bem mais precioso que devemos zelar com esmero, cuidados de lavrador da boa terra e plantador de sementes-embriões da boa-nova. Assim ela o quisera e escolhera - quem nela escolhe obscuramente fazer parte? Perguntas sim... porque não leitor?

Recolhamo-nos da hora perigosa do embate desse conto... até o próximo parágrafo.

Vania 25/10/2009 - 1h43.

"O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher." (...)

O bonde de desejo vacilava nos trilhos, alargava os horizontes, deixava entrar o vento que arejava e expandia o peito, fazendo com que Ana respirasse profundamente, expandindo, soltando a tensão da hora instável. Agora os ventos sopravam "aceitação" e aliviava o senho que provavelmente estivesse contido e liberava em seu rosto um ar de mulher... qual será o ar que impregnava as marcas faciais na hora instável?

"O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto." (...)

O alívio era momentâneo, pois a densidade da hora instável estava impregnada em cada poro, assim sendo o bonde se arrastava, nada poderia fluir, pois a prisão, as amarras eram internas. A hora instável exauria a tal ponto que Ana necessitava descansar até Humaitá... mas o descanso não seria mais viável a súbita visão de um homem parado no ponto tirou-a do "descanso".

"A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinhas avançadas. Era um cego. (...)

O homem era um "acordador", trazia diferenciais que fizeram Ana dispertar e encontrá-lo dentre os demais, estava "realmente" parado, os demais aguardavam ansiosos o próximo passo, o cego avança as mãos e aguarda impassível o que o demoverá de seu estado.

"O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles." (...)

A "tranquilidade" do cego, absorto mascando chicles a intranquilizava, deixando-a em estado de alerta... ou seja, a suposta tranquilidade dele acordava sua intranquilidade, remetia aos sentimentos da hora instável...

"Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar - o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultando, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada - o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo ruiu-se no chão - Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava - o bonde estacou, os passageiros olharam assustados." (...)

A hora instável nunca deixa de rondar, mas tudo que está fora ou "perdido nos pensamentos" chamam para fora, longe do cerne, da essência, o cego a tirara da "letargia", do "sono", mas o pensamento lembrava o compromisso com os irmãos, no entanto o coração segue outra ordem... o sangue pulsa latente, o sentimento é pouco "educado", pouco "domesticado" e faz com que o coração bata violentamente, a taquicardia desperta e faz com que Ana incline-se para olhar, "penetrar seu olhar" no cego, "como se olha o que não se vê" - aqui uma maravilhosa projeção: ao olhar o cego que não vê, subitamente pode vir a enxergar "coisas" que não via em si.

O cego cumpria seu papel - mascava goma na escuridão - insistia em movimentar a face, demonstar vida num rosto que não via, mas manifestava-se sem sofrimento, com os olhos abertos que não "enxergavam", mas podiam fazer ver, ele de olhos abertos sem ver o que está fora, ela de olhos abertos vendo o que está fora sem enxergar o que vai no interno... o movimento da mastigação remete ao sorriso, e faz com que voltemos no início (terceiro parágrado) em que "certa hora da tarde, as árvores que plantara riam dela"; o escárnio, o insulto, faz levantar a ira, a raiva, a cólera, desperta sentimentos mobilizadores de energia poderosa e que foge ao controle de alguém com sentimentos polidos... "Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio." - Eis o sentimento nomeado, o escárnio, o suposto insulto despertara o ódio o contrário do amor (apesar de não localizá-lo em nenhum momento do conto até então).

Ana continuava olhando, inclinando-se a ponto de "desequilibrar-se" com a arrancada do bonde... estava "desprevenida" - sem prevenção contra si mesma é lançada ao chão, o que faz com que libere um grito e deixe cair "o pesado" saco de tricô, que peso pode ter um saco de tricô - contém lãs e agulhas - creio que o peso não está nos objetos tangíveis e sim no intangível, na insustentável leveza do que vinha tecendo junto com o tricô.

O condutor dá ordem de parada... é a "parada" que pede à Ana que localize-se... onde está - dentro e fora e o que faz com este movimento de entrar e sair de si?

"Os passageiros olharam assustados" - podemos imaginar o tamanho do susto, do espanto de Ana estatelada no chão, "sem controle", à mercê...

"Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação a avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida." (...)

São 1h09 do dia 26 de outubro de 2009... preciso respirar, me recompor...

Retomando o 11º parágrafo transcrito acima...

Imobilizada e pálida... expressões características do medo, há muito não usadas, contudo bem guardadas nas circunvoluções do sitema límbico profundo (área cerebral que guarda as emocões primevas, bem próximas ao instintivo ao reptiliano = de réptil). Essa expressão quando "ressurge" se apresenta incerta e é incompreensível tamanha a gastura que nos causa... afinal quem de nós belos mortais acessa e gosta de contatar o medo e andar de braços e abraços com ele (?) ... o medo é uma emoção próxima da inconsciência, longe da luz... é difícil andar nas trevas... que dirá nas trevas internas...

O moleque dos jornais "ria"... assim como as árvores no início do conto... o que é passível de riso em Ana? Arrisquemos possibilidades:

  • o suposto controle com o qual nos protegemos da vida e guardamos bem a morte?
  • a pretensa falta de "conflito" e manutenção de "meia satisfação"?
  • o retrato de família (imagem congelada) com marido e filhos "verdadeiros"?
  • a própria imagem "criada" para satisfazer tudo que está fora - que às vezes denominamos "social", noutras identidade socializada, em outras ainda "máscara", Jung nomeou de "persona", podemos discorrer várias nomeações para dizer "com que roupa eu vou... com que cara me apresento ao mundo"... máscaras no teatro fazem rir e chorar...
  • a situação hilária de estar estatelada no chão, "desmascarada"?
  • é um moleque quem ri, uma criança de riso fácil, inocente... mas ri do que vê.

O moleque ri e entrega-lhe o volume em que os ovos haviam quebrado... ovos... protótipos embrionários de um novo ser, promessa de vida quebrada e que pinga amarela e viscosa entre os fios da rede... o que vem sendo "tecido" - "melou", "amarelou"... foi interrompido!

O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, "tentando inutilmente pegar o que acontecia" - o que poderia ele "pegar" literalmente, pois é com as mãos que vê... não estava ao alcance... Ana estava "resguardada" dentro do bonde... fora da "percepção" do cego... talvez pudesse ele "captar", "sintonizar" uma estranheza, "que algo bem próximo dele havia desandado... quebrara-se"... são conjecturas, hipóteses, possibilidades para um cego fora do bonde que carrega uma mulher que "desequilibra-se" com a "arrancada inesperada".

"O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida. "(...) uma cena, num palco-bonde que causa "sorrisos na platéia" - passageiros, que estão de passagem, mas que testemunham a "cena" digna de sorrisos... sempre me pergunto porque as pessoas riem quando alguém cai... cair pode levar a dor, ferida, morte... isso é passível de riso? O que vêm no simbólico do cair que leva a rir (?):

  • a inexorável lei da gravidade = todo corpo é atraído para o centro magnético da terra?
  • a descompostura que desalinha a personagem tão bem apresentável?
  • a cena que remete aos filmes de comédia "pastelão", nos quais as personagens caem para fazer rir?
  • lancem suas hipóteses e reflexões... não pretendo aqui "esgotar" possibilidades... portanto "haverá sempre, sempre esse dito não dito... esse quê de tensão... qualquer coisa no ar... esse desassossego" (de uma música que ouvi de Alceu Valença), presente nas questões humanas da existência..

O bonde segue seu caminho ao sinal do condutor, Ana é conduzida nele... segue à revelia da cena...

"Poucos instantes depois já não olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito."

Vou recolher-me ... prometo voltar para sacudir junto no bonde... é 31/10/09 - 1h36...

O 12º parágrado - transcrito acima menciona que "o cego ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito." (...) É de se perguntar, o que tenha causado "mal", ou tenha marcado de alguma forma fica atrás do que? que quem? - Atrás da persona, da máscara polida? Fica na pessoa - isso é certo, não podemos precisar o lugar, o quanto, o como... dizem que este ficar é registrado no inconsciente para Freud "recalcado", pois caracteriza-se algo "traumático" difícil de elaborar à primeira vista, para Jung também fica no inconsciente, como sombra, o outro eu que guarda tesouros acerca do si-mesmo.

A questão é que o ver o cego a afeta e isso não pode ser mudado, talvez a classificação de mal deva-se ao fato desta visão ter "desequilibrado" a aparente harmonia que parecia reinar na vida de Ana... "estava tudo bem"... o cego é portador de uma imagem especular que revela uma face inesperada de Ana - a face do "mal" (que ela não via) ou do que não estão tão bem quanto parece ou quer aparentar.

"A rede de tricô era áspera entre o dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisass que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem sr revertidas com a mesma calam com que não o eram."

O que sua mão podia tecer, manifestar, já não era reconhecido , não tinha a intimidade de outrora, a própria obra lhe era estranha, áspera, sem sentido e o fio condutor do bonde, o sentido de movimento e de ir em frente havia se partido... não sabia o que fazer, não só com as compras, mas com a própria vida que lhe fora revelada de súbito.

O mundo ao redor voltava ao movimento natural, seguia em frente... mas nela a música da existência reverberava com outro tom... "o mal estava feito", pois é dizem que o conhece-te a ti mesmo, a máxima do filósofo Sócrates é a lei para o despertar da consciência, mas "nada vem de graça, nem o pão nem a cachaça" como diz a música de Zeca Balero. O preço do despertar da consciência é doloroso e às vezes não damos conta de pagar e paralizamos, embasbacamos.

Teria Ana esquecido que havia cegos? Creio que nos esquecemos de nosso própria cegueira e passamos a "ver a trava no olho alheio".

A piedade a sufocava, "piedade" no dicionário Aurélio Buarque de Holanda - é: "pena dos males alheios; compaixão, dó, comiseração" - piedade de quem (?) do cego não haveria de ser... provavelmente pena da faceta revelada em si mesma, comiseração de um lado que não suponha existir... a sombra... o "lado escuro da força" como dizem em Guerra nas Estrelas... a energia de um ser é única e peculiar, não quer dizer unificada, equilibrada, essa força é composta de no mínimo dois contrários que antagonizam, divide, causa conflito e dor, mas é um sinal, um sintoma que pode nos alertar para mudança ou nos amargurar e tranformar-nos em queixosos, chorosos que sofrivelmente se auto-compadecem pelos cantos e não têm força de mudar a própria vida... e somos muitos neste estágio, mais do que se pode imaginar...haja visto o panorama do mundo que criamos.

A piedade lhe pesava no peito, no chacra cardíaco, a morada simbólica do amor. "Mesmo as coisas que exitiam antes estavam de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível..." O cotidiano grita aos ouvidos quando estamos à flor da pele, "tudo em mim quer se revelar"... se isso não ocorre por livre e espontânea iniciativa, "as coisas corriqueiras" - denunciam - anunciam aos quatro ventos que se está de sobreaviso, foi decretado um ultimato... a respiração fica pesada, o ar fica denso como se pudéssemos cortá-lo como a uma remessa de espuma... e oprime, pesa, não ventila o peito, angustia.

O mundo se tornara de novo um mal-estar... uma revelação que outrora fora um mal-estar e algo aplacou, recalcou o mal, mas o mal não sucumbe, se não foi elaborado (resolvido, na linguagem comum), retorna com toda a força de um vulcão que fica pulsando no seio da terra está explodir, como o fogão da cozinha de Ana.

"Vários anos ruíam, as gemas amarela escorriam"( ...) - a construção do tempo como se fosse concreto impacta os sentidos quando mostra-se etéreo... aqui o tempo tem um simbolismo: os anos somam, personificam uma vida... e esses anos na vida de Ana agora ruíam, vinham abaixo, por terra, expulsar "Eva" do paraíso, dos seus próprios dias, como se fóssemos os donos de Chronos - o grande deus do tempo que a tudo devora incansavelmente.

(...) parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, ou seja, corriam perigo, a sensação de periclitância era acerca das próprias personas, as "pessoas" que a coabitavam, as personagens internas, até então bem constituídas... corriam perigo, "mantinham-se por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão"... o perigo da insconsciência, da loucura... o medo de não ser ou reconhecer-se longe do si-mesmo, da essência supostamente"conhecida"... Alceu Valença canta uma música assim: "a solidão é fera, a solidão devora, é amiga das horas, prima irmã do tempo e faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração... solidão".

(...)" - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir." (...) dizem que para quem não sabe para onde ir, não tem um norte, qualquer rumo serve... o grande dilema do prisioneiro que não sabe o que fazer com a tão almejada liberdade e deixa-se prender novamente, pois não conhece outra forma de vida. Ana desnorteara-se...

(...) Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não são. (...) A ausência de lei se dá no insconsciente, não há razão, moral, código algum que possa amparar o ser, no insconsciente estamos à mercê da "sorte", soltos sem a "lei" da gravidade terrestre (consciência - que é só a ponta do iceberg), por isso um mergulho nos domínios da sombra desencadeia a vertigem... como se despencássemos do alto de um penhasco amarrados a uma corda, sabemos que uma hora haveremos de "parar", mas o como e quando parecem intermináveis e apavorantes... não temos onde nos segurar...

E a consciência de que as "coisas não podem ser revertidas" - desestrutura, estonteia, rouba o chão debaixo dos pés, o engraçado é que até este momento de epifania, pensamos que controlamos o que nos ocorre e que podemos reverter tudo que nos acomete... mais uma ilusão humana, mais uma dor, desilusão, impotência diante do que se faz presente... somos mortais, falíveis e sofremos, padecemos disso, é nossa condição terrestre.

"O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego masgando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuiam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa."

Por hoje...é isso... 31/10/09 - 23h05 - Vania.

A epifania desencadeada com a imagem do cego deflagrou a crise, o sofrimento o espanto... Crise no dicionário Aurélio é: "manifestação violenta e repentina de ruptura de equilíbrio; manifestação violenta de um sentimento: crise de raiva, crise de ternura, crise de choro; estado de dúvidas e incertezas (...)". Sofrimento - "angústia, aflição, amargura; paciência, resignação; infortúnio, desastre". Espanto - "assombro, pasmo, admiração; sobressalto, susto, medo; terror, pavor, assombro".

Uma crise expõe um rompimento, Ana rompera com o "mundo perfeito" criado para fazer-de-contas; essa ruptura desestabiliza o "equilíbrio das coisas", arrumamos tão bem nossa doença que a cura é uma ameaça; Ana sofre, se angustia, resigna-se diante do "desastre" deflagrado pela imagem do cego. O sofrimento leva a um estado de penúria, auto-comiseração como já vimos, amargura, o "doce" sabor da dolce vita, já não está mais lá, deixou espanto, assombro, sobressalto (tudo desassossega e remete à situação), não se tem mais paz, o medo é o senhor da mansão da persona, e ele rouba vida, rouba sentido, tinge tudo de paralisia púmblea. Resta agora uma vida cheia de sobressaltos, até que o equilíbrio venha restabelecer-se novamente.

O semblante de Ana agora traz a marca "do prazer intenso" com que olha para as coisas, sofrendo espantada... o corpo é um grande auxiliar na tomada de consciência se nos ocuparmos dele, se nos darmos conta que guarda emoção, sentimento em cada músculo utilizado para expressar, a questão é que não fazemos isso, padecemos do que sentimos e nos tornamos refém da prisão em que transformamos o corpo. Padecemos nele e com ele.

O calor aumentara, tornara-se "abafado", tudo ganha intensidade, tudo ao redor clama por atenção e abafa o peito, angustia, enibria o sensar; na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, essa revolução interna, clamando por externar-se, para rebentar não tinha nada de voluntária, por isso o sofrimento, pois pegou de surpresa, de assalto e revelava grades secas de esgoto (de onde provém mal cheiro) e ar empoeirado, de coisa velha, putrefata, que exala mal cheiro. O esgoto trás má agua, água parada, fétida, a má água no corpo humano traduz-se por mágoa - águas sujas paralisadas, sentimentos pesados se revelando, exalando por todos os poros a insatisfação, o matiz de uma vida pouco arejada, sufocada.

"Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão." O cego foi o instrumento de revelação do sofrimento latente que agora viera à tona, entornando os caldos da emoção purulenta, mergulhando o mundo supostamente claro em escura sofreguidão. O sofrimento tem a função de acordar o sonâmbulo, despertando para o real, por mais doloroso que seja... é assim: escuro, doloroso, mas todo seu! Esperando para ser revolvido, trabalhado, escarafunchado para que ganhe vida.

Quando nos sentimos fracos só vemos pessoas fortes, parece que tudo se opõe ao nosso estado, pois o antagonismo é uma polaridade necessária para despertar, acordar o que em nós dorme. Ana via em cada pessoa forte ausência de piedade pelo cego, pois o forte, o altivo, vigoroso e altaneiro não deve apiedar-se do cego em nós, deve assustar-nos aterrorizar-nos, e se esse terror for real não intencionaremos nos demorar nele, teremos de optar por trabalhar em busca da essência, em busca da verdade, aprofundar o raso com o qual nos ocupamos e nos contentamos.

"Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto" - o ter rosto, revela identidade da qual Ana via-se destituída, não tinha rosto, tinha expressão no olhar intenso com o qual se demorava nas coisas, um olhar focado, talvez perdido, como o olhar vasado do "louco", do "insano" que não quer deter-se nas coisas e as atravessa, vai além... no horizonte azul da cor do vestido da mulher... céu, infinito, morada do divino.

Diante da visão da mulher Ana desvia o olhar depressa, pois olhar para um rosto lembraria que agora ela não tinha um, olhar para qualquer movimento das pessoas (mãe empurrando o filho, casal de namorados entrelaçados e sorridentes) que circulavam em seu entorno - remetia à paralisia em que se encontrava. "E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa", a indulgência do bom para com o cego causa dor, pois "ele" não carece desse sentimento, ele carece ocupar o lugar de mérito, o lugar de visão, mesmo que olhos não tenha para ver, é detentor de sentidos, de "mãos que avançam para pegar o que acontece", e essas mãos devem alcançar o propósito.

"Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca."

Por hora é isso... Vania - 31/10/09 - 11h39.

O que é apaziguar a vida? Mantê-la morna, semi-morta, sob controle... deve ser isso, pois já pensou se a vida explode? Que estrago deve fazer em todos os scripts, bem montados e planejados para ir em cena na hora e dia "x"?

Mantinha tudo em serena compreensão... era sua mão quem dava "vida" a tudo, pelas mãos de Ana mantinha-se a serenidade, a expressão de serenidade... como o morto no caixão... tranquilo, calmo e sereno e porque não - compreensivo... é fácil compreender quando não há envolvimento, quando se olha para a vida e não se arrisca vivê-la. Manter tudo em serena compreensão, evitar o conflito... conflitar causa atrito, energia vital que comanda o movimento, a vida!

"Separava uma pessoa das outras"(...) o encontro das pessoas pode misturá-las, confrontá-las, esbarrá-las, criar atrito, gerar energia de relacionamento... é preciso separá-las como numa ordenação cartesiana, um método classificatório: essa pessoa separada dessa, aquela separada daquela outra, um movimento onipotente... "ela separava", ela comandava o espetáculo, Ana tinha "tudo sob controle", "as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite", parece que não só as roupas eram feitas para serem usadas, as pessoas também, roupas e pessoas - na mesma categoria de "coisa", "objeto" que arranjamos e damos "serventia". O filme da noite também podia-se escolher, a noite, o momento da entrega não pode "ficar solto" é preciso que um filme venha preenchê-lo até que chegue o sono... "tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro", mecânico, previsível, sem risco, sem novidades, rotina tranquilizadora para manutenção da serenidade e da "meia satisfação".

"E um cego mascando goma despedaçava tudo isso." (...) a visão do cego desordenara a organização prévia... maldito cego para o que estava cego em Ana, bendito cego para o que queria ver! Mas o que se faz com a visão? "E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca", a vida que "aparecia", revelada na visão do cego, nauseava - a náusea - sentimento de repulsa, repugnância, nojo... vontade de vomitar, por para fora o indigesto... o nojo é uma das cinco emoções básicas e comuns à espécie humana (revelada nas pesquisas com diferentes culturas). Santa náusea doce!

...volto após o nausear e sua consequência! Vania

"Só então percebera que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite."

Perdera o ponto de descer do bonde e passara o tempo de descer do bonde que conduzia sempre à "meia satisfação". A fraqueza revelava a falta de vitalidade, de força, de energia, a deixava vulnerável a qualquer coisa, nem as próprias pernas obedeciam, estavam débeis, não tinham direção, pois Ana estava desorientada, desnorteada, no escuro do meio da noite, nada podia clarear os rumos de sua vida naquele momento.

"Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico."

A percepção do espaço externo fica alterada quando estamos acometidos pelo susto, a rua comprida, os muros altos, amarelos = na tentativa de chamar a atenção, clarear o caminho. O medo andava de braços dados com ela e impedia de localizar-se, estava "perdida", mas a vida que descobrira (tirara o véu com o auxílio do cego), continuava a pulsar e um vento mais morno, capaz de aquecer seu coração, tirar o frio do medo... o vento simboliza o pensamento, estes manisfestavam-se misteriosos rodeado-lhe o rosto, o mistério é o que ainda não foi revelado, está obscuro, foge ao domínio cognitivo e às explicações lógicas.

Paralisa olhando o muro e localiza-se, enfim o amarelo do muro cumpre o seu papel, clareando e mostrando o lugar, caminha, atravessa os portões, ultrapassa o mundo totalmente desconhecido e encontra-se no Jardim Botânico. O simbolismo do "jardim é o Paraíso terrestre, do Cosmo de que ele é o centro, do Paraíso celeste, de que é a representação, dos estados espirituais, que correspondem às vivências paradisíacas". (CHEVALIER; GHEERBRANT, p. 512, 1996)

Ana atravessa os portões do Jardim Botânico, a representatividade de seu estado "espiritual", pois se conectara a uma vivência interna viva, paradisíaca.

"Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo."

O peso dos passos dava gravidade, a "segurava" na terra, conectando com certa firmeza. Percorria a alameda central, o coração pulsante do jardim, entre o coqueiros e não tinha testemunhas, podia se entregar a si mesma, "sentou-se no banco de um atalho", tomou um atalho, era melhor resguardar-se mesmo estando aparentemente só e deter-se em si mesma sem pensar nas horas.

"A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si."

A vastidão constratava a opressão de minutos atrás e a acalmava pois ampliava o peito, deixando com que respirasse regulada pelo silêncio... no dicionário de símbolos "o silêncio é um prelúdio de abertura à revelação, o mutismo, o impedimento à revelação, seja pela recusa de recebê-la ou de transmiti-la, seja por castigo de tê-la misturado à confusão dos gestos e das paixões. O silêncio abre uma passagem, o mutismo a obstrui. Segundo as tradições, houve um silêncio antes da criação; haverá um silêncio no final dos tempos."

O silêncio que regulava sua respiração prenunciava a revelação, abria espaço para a criação, como se estivesse no jardim do Éden (o Paraíso de Adão e Eva) e pudesse começar, dar início a uma nova vida. "Ela adormecia dentro de si"... adormecer é distanciar-se da consciência, mergulhar nas profundezas do self, além do mais o sono restabelece, restaura o homeostase básica da existência.

"De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho."

É 00H001 preciso restabelecer-me...Vania 03/11/2009

Aléia é uma fileira de árvores e arbustos; passeio ou arruamento (de jardim ou parque, etc.) ladeado de árvores ou de arbustos (HOLANDA, p. 65, 1975). Via um caminho arborizado, passagem, possibilidades de ir, esperança, mesmo que os ramos o cobrissem de penumbra era possível vê-lo... então ele existia!

"Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais." (...)

Estava volteada de ruídos serenos, diferente de barulho, o Aurélio trás: "qualquer estrondo, barulho, estrépito, fragor; rumor contínuo e prolongado; bulício" - rumor contínuo, sinal de vida, cheiro - o ar trazendo cheiro de vida das árvores, pequenas surpresas entre cipós, era possível ater-se a detalhes, perceber surpresas entre os cipós, cipós servem para estabelecer ligação entre uma árvore e outra, parece um meio de comunicação, interligações...

Todo o Jardim estava reduzido a pequenos fragmentos, estava triturado pelos instantes, até o tempo era diminuto, urgia no apressamento da tarde... na "hora perigosa". "De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada?" - era possível sonhar, mesmo que pela metade, algo em Ana revitalizava, o sonho é o mensageiro do inconsciente... então esta instância psíquica queria com ela se comunicar, queria mostrar-se, revelar nem que fosse uma parte de vida, de possibilidade. Zunido de abelhas e aves, asas da liberdade, asas que cortam o ar, ar elemento simbólico do pensar - ligações, relações, elos... tudo era estranho (assim se mostra o mundo inconsciente, nada é previsível... tudo surpreende), suave demais que contrastava com o susto que a acometera em instantes atrás, como algo suave comunica em nossa percepção (?), não é preciso gritos... sussurros são audíveis... "tudo que cala fala mais alto ao coração" (música de Lulu Santos); tudo era grande demais, a percepção amplia, a natureza se encarrega de mostrar a amplitude... expandir janelas.

"Um movimento leve e íntimo a sobressaltou - voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pelos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu."

Movimento, vida, leveza, intimidade, tudo remetia às vivências familiares... inclusive o sobressalto passa a fazer parte do novo cenário... a sutileza do movimento chama a atenção e faz perceber a imobilidade de um poderoso gato; "o simbolismo do gato é muito heterogêneo, pois oscila entre as tendências benéficas e maléficas, o que se pode explicar pela atitude a um só tempo terna e dissimulada do animal. No Japão, o gato é um animal de mau augúrio, capaz, segundo dizem, de matar as mulheres e de tomar-lhes a forma", este preâmbulo (pois as orientações sobre este símbolo são extensas) consta do dicionário dos símbolos. O que será que este poderoso gato quer revelar à Ana, aqui em nossa cultura costumam dizer que ele tem sete vidas, seus pelos eram macios convidando ao afago, "mas em novo andar, desapareceu"... parece uma anunciação... algo está por revelar-se... que mistério aguarda Ana?

"Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber."

A inquietação volta, até o ramos balançam e as sombras vacilam, a instabilidade ameaça o Paraíso... o mal-estar (Freud ocupa-se dele em pelo menos um volume de sua obra) - parece que foi enganada, "quem" a enganou? Está às voltas consigo mesma, as alamedas do Jardim são internas, de repente onde reinava a "suavidade" apresenta-se uma emboscada. A emboscada parece coisa da carta zero do tarô o Louco, a total insconsciência, a falta de percepção das consequências... que na sequência caminha para a carta I - o Mago - o embusteiro, o senhor das ciladas, o manipulador da consciência, e sabemos que existem partes de nós que trabalham em silêncio sem que a percebamos... revelam-se "do nada" e "do tudo"... revelam nossos segredos mais íntimos... escancaram as portas que dão para dentro..."sim, eu poderia abrir as portas que dão prá dentro, percorrer correndo corredores em silêncio, perder as paredes aparentes do edifício, penetrar no labirinto, o labirinto dos labirintos dentro do apartamento, mas eu prefiro abrir as portas... (trecho de uma música cantada por Maria Bethânia no Festival Rosa dos Ventos); quando eu prefiro - escolho, e escolher é da natureza do ego, perde-se o sonho que vinha sendo revelado pelo insconsciente, me recolho em proteção contra mim e fecho o alçapão embaixo dos pés, a emboscada preparada por um eu - não autorizado, um senhor poderoso como o gato que enverada pelos mistérios, percebo e "estrago tudo"...inviabilizo a possibilidade de sair da prisão.

"Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumurejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos."

Este é o 24º parágrafo... a morte nunca é o que pensamos... vi isso em meus poemas...Vania - 04 de novembro de 2009 - 00h34...

A partir de agora vou transcrever apenas o conto sem a análise, pois pretendo publicá-lo em papel... não quero estragar a surpresa...

"Ao mesmo tempo que imaginário - era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega - era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesser grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. gora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais advinhava que sentia seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra, estava fofa. Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria - e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudia os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito - o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava - que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximaçõ da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto e machucá-lo. Como se soubesse de um mal - o cego ou o belo Jardim Botânico? - agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se.Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o."

Continuarei em outro momento... Vania 05 de novembro de 2009 - 00h29.

"já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado dos que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranquilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo - e que nome se deveria dar à sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar o leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, també sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego!pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-see foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarrapara mudar a água - havia o horror da flor se enregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tenque. Os besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram o irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janela todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um puco pálida e ria suavemente com os outros."

Continua... Vania 06/11/09 - 8h29.

"Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodearam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, An prendeu o instante enre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com seu marido diante do café derramado.

- O que foi? gritou vibrando toda.

Ele se assutou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

- Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a si, em rápido afago.

- Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

- Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afantando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia."

Do livro Laços de Família - Clarice Lispector - 21ª. Edição - Francisco Alves Editora - págs. 29 a 41 - conto: AMOR.

Entre, leia e comente...

Vania Longo - 07/11/2009 - 00h10.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

APRESENTAÇÃO




  • Psicóloga

  • Professora

  • Psicopedagoga

  • Consultora em Educação a Distância

  • Contadora de Histórias

...E se essa fome fosse aplacada

Com um alimento qualquer

Seria uma fome digna?

Uma fome que te acorda?

Uma fome digna: lateja, clama

Uma fome digna: pulsa, inflama

Uma fome digna: reclama

A dignidade adormecida.

Uma senhora fome se impõe

E insiste renitente!

O que esta senhora intenciona?

Apenas que fique presente!

Onde será que ficas presente?

Onde mais ausente te encontras

Onde se quer desconfias

Nos recônditos de ti é onde despontas!

Acordai, acordai!

Essa fome jamais será saciada

Pois onde dormes

É onde mais desperto estás!

Vania Longo 14/03/2009