segunda-feira, 23 de novembro de 2009

MIA COUTO - UMA DAS MELHORES EXPRESSÕES

Mia Couto - Uma das Melhores Expressões para o meu sentimento
"O coração é como árvore - onde quiser volta a nascer."
(Adaptação de um provérbio moçambicano p. 111)
"De que vale ter voz
se só quando falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?"
(Versos do menino que fazia versos - p.131)
A infinita fiadeira
(A aranha ateia diz ao aranho na teia: o nosso amor está por um fio)
"A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabada as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.
E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem fim nem finalidade. Todo o bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.
Para a mãe aranha aquilo não passava de mau senso. Para quê tanto labor se depois não se dava a indevida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação de sua espécie.
- Não faço teias por instinto.
- Então faz porquê?
- Faço por arte.
Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho de sua seda. Os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:
- Minha filha, quando é que assentas as patas na parede?
E o pai:
- Já eu me vejo em palpos de mim...
Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:
- Estamos recebendo queixas do aranhal.
- O que é que dizem mãe?
- Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.
Até que decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.
- Vai ver que custa menos engolir mosca - disse a mãe.
E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?
A aranhiça levou o namorado a visitar a sua coleção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.
A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime. Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou ao mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?
- Faço arte.
- Arte?
E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e aos poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos - chamados de obras de arte - tinha sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece."
Pergunto: - Em qual teia me teci? De que sou feita? Qual é o meu lugar? Será transitar entre os mundos?
Qualquer hora dessas tecerei a arte de analisar esse maravilhoso conto desse maravilhoso autor, que vocês encontram no livro: "O Fio das Missangas" - Ed. Companhia das Letras.
Vania Longo - 24/11/2009 - 00h30 - vou dormir com um sentimento melhor do que o que me acordou.

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